Aceito
sua ausência. Ela é sentida diariamente. É encontrada em cada olhar perdido
meu. É percebida por qualquer um que esteja um pouco mais atento. Mas não há dor,
ou ressentimento. Há fé. Há esperança. Sua procura é tão longa e angustiante quanto
a minha. Eu entendo. E aceito. Porque além de vontade de te ver de novo, há
certeza de que esse momento tem seu próprio tempo. Sinto saudade. Saudade
porque eu sei que há de ser um reencontro. E sei que você também sente essa
distância rasa, estreita, próxima... Você sabe que se estendermos as mãos,
poderemos tocar um ao outro. Caminhamos lado a lado. Posso sentir seu cheiro, o
calor da sua respiração no meu cabelo, num abraço longo e consolador. O timbre
da sua voz é familiar, é melodioso, é um pouco meu também. Se prestar bem
atenção, consigo ouvir o som das teclas enquanto você digita seu relatório para
a empresa. E você também ouve o som das minhas teclas, e sabe que escrevo para
você. Sabe as músicas que vou ouvir enquanto te escrevo, e procura suas cifras
para me acompanhar. Sabe ainda que será meu companheiro quando for visitar a
torre Eiffel. E que vai tirar aquela foto clássica, já que é você que conhece
meu melhor ângulo, e liberta meu sorriso mais gostoso, minha risada mais
sonora. Sabe também que a minha afinação voltou, só porque você está perto o
suficiente para aquecer tudo, até minhas cordas vocais. Sabe que aquele pijama
macio espera por você dentro da gaveta. Sabe que se há brilho nos meus olhos é
porque eu sei que vou ver você ajeitando os óculos para me ver procurar feito
louca minha caneca preferida, que você escondeu de propósito. E ver você
tirando os óculos quando eu chegar perto e te pedir um beijo. E você vai sentir
minha pele gelada quando percebo que vou ganhar um pouco mais que isso... Essas
certezas nos acompanham. São elas que tornam essa espera menos sofrida. E essa
saudade só não dói porque de algum jeito, misterioso e óbvio, estamos juntos
nessa espera, certos de que falta muito pouco...
Esse espaço foi criado para dividir com as pessoas alguns dos meus ensaios artísticos, sempre na tentativa de decifrar sentimentos, momentos, visões, percepções, sentidos... Daí o nome, "cheiro de flor...", um perfume suave, que só é sentido com extrema sensibilidade e coração...
terça-feira, 26 de agosto de 2014
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Lá
estava o menino. Ele estava ali, sentado no cantinho, tentando acertar quantas
joaninhas pousaram na parede. Ele não queria ouvir. Eram gritos muito altos.
Aquele som o acompanhava fazia tempo, e ele só queria um pouco de silêncio. Um
silêncio em que coubesse sua voz de menino, seus medos de menino. “Por que
falam tão alto?”, pergunta o menino para si mesmo. E uma voz generosa responde
dentro daquele coraçãozinho: “É que eles estão distantes demais para ouvirem um
ao outro.” Um pouco espantado, e encucado, o menino questiona: “Longe? Como
longe? Eles estão pertinho, lá na sala de TV!”. E a voz paciente esclarece:
“Seus corações, meu menino, esses sim estão muito longe. É preciso gritar para
ser ouvido”. Sem saber muito bem como, o menino entende exatamente o que aquela
voz quis dizer, e tudo faz mais sentido agora. Inquieto, ele olha em volta,
passa os olhos devagar pelos espaços, como quem procura. Se abaixa diante da
porta do quarto do irmão mais velho, e dá uma olhadela por debaixo da porta.
“João tá de brincadeira comigo, só pode!”, ele se convence. “Não é o João, meu
menino”, se manifesta a voz dentro dos seus ouvidos. “Sou Eu. Seu melhor amigo.
Fique sossegado. Eu estou aqui”. “Meu melhor amigo? O Pedrinho tá na casa da vó
dele!” Então a voz mansa sorri levemente, e ajuda: “Eu ouvi sua oração enquanto
contava as joaninhas na parede. Eu te ouço todas as noites. Sei que as brigas
te amedrontam, e que você pensa que seus choros não são ouvidos por ninguém.
Mas eu te ouço, criança. Eu te sigo por onde vai, recolho suas lágrimas, alivio
suas dores, escuto suas preces...”. “Escuta mesmo? Duvido! Escuta nada! Eles
ainda brigam todos os dias e parece que só piora! E eu fico aqui, sozinho!” E
mais uma lágrima desce daqueles olhinhos sofridos. “Oh meu menino... há tanto
para entender... e você é apenas uma criança. Eu quero abrir os olhos do seu
pai. Quero mesmo. Quero fazê-lo entender que a bebida faz mal demais a ele, e
que o trabalho enobrece. Sua mãe também chora quando você está dormindo, e me
pede força. O que ela não entende é que eu só posso agir através dela mesma.
Ela precisa agarrar a força que eu ofereço e tirar vocês daqui até que seu pai
melhore. Mas ela também tem muitos medos. Você entende?”. Os olhos do menino
estão arregalados. Como aquela voz pode saber tanto sobre ele, seus pais, suas
lutas? Como ele sabe que seus dias são chorosos, e que sua família está por um
fio? A luz acende. É sua mãe. Ela se abaixa, olha para seu menino. Seus olhos
estão marejados. Mas há tanta ternura neles... Ela veio dizer que o jantar está
pronto. “Vem almoçar, meu amor! A mamãe fez sobremesa!”
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